Homem e a Sociedade

40

Criado a imagem e semelhança de Deus, o homem possui uma eminente dignidade; “Possui uma alma espiritual e imortal; é uma pessoa, admiravelmente provida, pelo Criador, de um corpo e de um espirito: um verdadeiro “microcosmo”, como diziam os antigos, isto é, um pequeno mundo, que, por si só, vale muito mais do que o imenso universo inanimado. Nesta vida e na outra, o homem só a Deus tem por fim último; pela graça santificante, ele é elevado à dignidade de filho de Deus, e incorporado ao reino de Deus no Corpo Místico de Cristo.¹

“Só o homem, só a pessoa humana, e não a coletividade em si, é dotada de razão e de vontade moralmente livre”. ² O homem, e não a sociedade, é que é imortal. Ao homem, e a cada homem, foi que Deus amou e que Jesus Cristo remiu.

Esse destino pessoal confere a todo homem, seja qual for sua origem ou a sua raça, direitos fundamentais e imprescritíveis, que se trata de fazer respeitar e de fazer passar à realização prática, e, especialmente, segundo o ensino de S. S. Pio XII:

– o direito de manter e de desenvolver a vida corporal, intelectual e moral, e em particular o direito a uma formação e a uma educação religiosa;
– o direito ao culto de Deus, culto privado e público, inclusive a ação caritativa religiosa;
– o direito em princípio, ao casamento e à consecução de seus fins;
– o direito à sociedade conjugal e doméstica;
– o direito ao trabalho como meio indispensável à manutenção da vida familiar;
– o direito à livre escolha de um estado de vida, e portanto também do estado sacerdotal ou religioso;
– o direito ao uso dos bens materiais na consciência dos próprios deveres e dos limites sociais³

Proclamar a dignidade da pessoa humana, o seu destino imortal e os seus direitos imprescritíveis, nisto não é que consiste o individualismo.

Este erro pernicioso pretende que a índole social do homem é puramente acidental, quando na realidade é essencial e lhe penetra a natureza inteira.
Não é verdade que o indivíduo se baste a si mesmo. Por mais preciosas que sejam as suas faculdades, sem a sociedade na qual é chamado a viver ele não pode nem conservar a sua existência, nem atingir a perfeição do espirito e do coração. As faculdades que ele recebeu de Deus ordenam-no para a vida em comum, e não podem expandir-se senão graças a ela.

Se o individualismo exagera os direitos do indivíduos, outros sistemas, pelo contrário, tem exagerado os direitos da coletividade, tal o socialismo marxista, sobretudo na sua forma extrema: o comunismo, o socialismo positivista, o nacional-socialismo, o nacionalismo absoluto, os sistemas políticos totalitários. Estes erigem em valores absolutos valores relativos, como a sociedade sem classe, a sociedade, a raça, a nação ou o Estado.

Equidistante de tais excessos, o pensamento cristão afirma ao mesmo tempo a eminente dignidade da pessoa humana e a necessidade da sociedade para sua expansão integral.

Na ordem jurídica, o individualismo traduz-se por um subjetivismo radical que atribui à pessoa humana uma autonomia absoluta, e aos direitos individuais um valor incondicionado.

As constituições políticas do século XIX mais de uma vez incidiram nesses excessos.

Reciprocamente, o socialismo positivista traduz-se, na ordem jurídica, por um objetivismo radical. Sendo a sociedade, como se pretende, uma realidade superior e anterior aos seus membros, estes não tem outros direitos senão aqueles cujo exercício é imposto pela solidariedade social. Semelhante objetivismo redunda em desconhecer a pessoa do homem e em negar os direitos decorrentes da natureza humana. Eles faz da sociedade o fim e do homem um meio.

Da mesma sorte, o comunismo e os sistemas totalitários desconhecem o valor próprio e o destino transcendente da pessoa humana, e não lhe reconhecem em face da coletividade, outros direitos a não ser os que esta se digna de lhe conceder.

Segundo a concepção cristã, entre a pessoa humana e a sociedade existe uma correlação e uma interdependência impostas pela natureza em vista do destino humano. “A sociedade é querida pelo Criador como o meio de levar ao seu pleno desenvolvimento as disposições individuais e as vantagens sociais que cada um alternativamente, dando e recebendo, deve fazer valor valer para seu bem e para o bem dos outros. Quanto aos valores mais gerais e mais altos, que só a coletividade pode realizar e não já os indivíduos isolados, esses também, em definitivo, são queridos pelo Criador para o homem, em vista da plena expansão natural e sobrenatural deste, e para o acabamento da sua perfeição4.

Sendo o bem comum da sociedade um bem humano, determinado em última análise pela natureza e pelo mesmo destino do homem, jamais pode a sociedade frustrar o homem dos seus direitos pessoais, fundamentais. Ela só pode é lhes regular o exercício consoante as exigências do bem comum, as quais nunca vão de encontro ao verdadeiro bem humano.

A Igreja, portanto, não reconhece em si mesma nenhuma competência para formular juízos sobre o valor técnico das doutrinas e das organizações econômicas, mas tem direito e o dever de aprecia-las sob o ponto de vista moral, quer em si mesmas, quer nas suas consequencias5.

¹) Pio XI, Enc. Divini Redemptoris, 19 de março de 1937, n° 27.
²) Ibidem, n°29.
³) Pio XII, discurso de Natal de 1942.
4) Pio XI, Enc. Mit brennender Sorge, 14 de março de 1937.
5) Pio Xi, Enc. Quadragesimo Anno, 15 de maio de 1931, ns 53-56

Deixe um comentário